quarta-feira, novembro 01, 2006

A Morte, O Espaço, A eternidade

De morte natural nunca ninguém morreu.

Não foi para morrer que nós nascemos,

não foi só para a morte que dos tempos

chega até nós esse murmúrio cavo,

inconsolado, uivante, estertorado,

desde que anfíbios viemos a uma praia

e quadrumanos nos erguemos. Não.

Não foi para morrermos que falámos,

que descobrimos a ternura e o fogo,

e a pintura, a escrita, a doce música.

Não foi para morrer que nós sonhámos

ser imortais, ter alma, reviver,

ou que sonhámos deuses que por nós

fossem mais imortais que sonharíamos.

Não foi. Quando aceitamos como natural,

dentro da ordem das coisas ou dos anjos,

o inominável fim da nossa carne; quando

ante ele nos curvamos como se ele fora

inescapável fome de infinito; quando

vontade o imaginamos de outros deuses

que são rostos de um só; quando a dor

é um erro humano a que na dor nos damos

porque de nós se perde algo nos outros, vamos

traindo esta ascensão, esta vitória, isto

que é ser humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas

nós somos o que nega a natureza. Somos

esse negar da espécie, esse negar do que

nos liga ainda ao Sol, à terra, ás águas.

para emergir nascemos. Contra tudo e além

de quanto seja o ser-se sempre o mesmo

que nasce e morre, nasce e morre, acaba

como uma espécie extinta de outras eras.

Para emergirmos livres foi que a morte

nos deu um medo que é nosso destino.

Tudo se fez para escapar-lhe, tudo

se imaginou para iludi-la

até coragem, desapego, amor,

para que a morte fosse natural.

Não é. Como, se o fora, há tantos milhões de anos

a conhecemos, a sofremos, a vivemos,

e mesmo assassinando a não queremos?

Como nunca ninguém a recebeu

senão cansado de viver? Como a ninguém

sequer é concebível para quem lhe seja

um ente amado, um ser diverso, um corpo

que mais amamos que a nós próprios? Como

será que os animais, junto de nós,

a mostram na amargura de um olhar

que lânguido esmorece rebelado?

E desde sempre se morreu. Que prova?

Morrem os astros, porque acabam. Morre

tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?

Só prova que se morre de universo pouco,

do pouco do universo conquistado.

Não há limites para a Vida. Não

aquela que de um salto se formou

lá onde um dia cristais comeram;

nem bem aquela que, animal e planta,

foi sendo pelo mundo esse morrer constante

de vidas que outras vidas alimentam

para que novas vidas surjam que

como primárias células se absorvam.

A Vida Humana, sim, a respirada,

suada, segregada, circulada,

a que é excremento e sangue, a que é semente

e é gozo e é dor e pele que palpita

ligeiramente fria sob ardentes dedos.

Não há limites para ela. É uma injustiça

que sempre se morresse quando agora

de tanto que matava se não morre.

É o pouco universo a que se agarram,

para morrer os que possuem tudo.

O pouco que não basta e que nos mata,

quando como ele a Vida não se amplia,

e é como a pel’do onagro, que se encolhe,

retráctil e submissa, conformada.

È uma injustiça a morte. É cobardia

que alguém a aceite resignadamente.

O estado natural é complacência eterna,

é uma traição ao medo por que somos,

àquilo que nos cabe: ser o espírito

sempre mais vasto do universo infindo.

O Sol, a Via Láctea, as Nebulosas,

teremos e veremos, até que

a Vida seja de imortais que somos

no instante em de da morte nos soltamos.

A morte é deste mundo em que o pecado,

a queda, a falta originária, o mal

é aceitar seja o que for rendidos.

E Deus não quer que nós , nenhum de nós,

nenhum aceite nada. Ele espera,

como um juiz na meta da corrida,

torcendo as mãos de desespero e angústia,

porque não pode fazer nada e vê

que os corredores desistem se acomodam,

ou vão tombar exaustos no caminho.

De nós se acresce ele mesmo que será

o espírito que formos, o saber e a força.

Não é nos braços dele que repousamos,

mas ele se encontrará nos nossos braços

quando chegarmos mais além do que ele.

Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,

a quem te amou a quem te deu o ser –

não nos aguarda, não. Por cada morte

a que nos entregamos el’ se vê roubado,

roído pelos ratos do demónio,

o homem natural que aceita a morte,

a natureza que de morte é feita.

Quando a morte chegar em que já tudo

na terra foi humano – carne e sangue -,

não haverá quem sopre nas trombetas

clamando o globo a um corpo só, informe,

um só desejo, um só amor, um sexo.

Fechados sobre a terra, ela nos sendo

e sendo ela nós todos, a ressurreição

é morte desse Deus que nos espera

para espírito seu e carne do Universo.

Para emergir nascemos. O pavor nos traça,

este destino claramente visto:

podem os mundos acabar, que a Vida,

voando nos espaços, outros mundos,

há-de encontrar em que se continui.

E, quando o infinito mais não fosse,

e o encontro houvesse de um limite dele,

a Vida com os seus punhos levá-lo-á na frente,

para que em Espaço caiba a Eternidade

Jorge de Sena