sábado, março 03, 2007

Os velhos da cidade velha.

Eles saíram de todos os asilos do mundo e vieram para a rua.
Não fizeram nenhuma revolução, saíram calmamente, com a bengala, arrastando-se nas pernas, andando com calma e precaução, mas olhando-te sempre nos olhos. Saíram e ocuparam o outrora bairro novo da cidade velha. Enchem os passeios, os bancos de jardim, os correios, a entidade bancária onde tinham dinheiro durante todo o tempo de que têm memória, ocupam qualquer lugar que seja necessário, ainda que tenham preferência por aqueles que já conhecem.
Olham-te fixamente e nunca terão oportunidade, nem tempo, para te passar uma mensagem importante que eles guardam para ti.
Já não têm voz, os velhos apenas têm um olhar fundo onde já não lhe vês as pupilas, e é apenas desta forma que comunicam. Como não têm voz manifestam o seu descontentamento da única forma que sabem, aglomeram-se.
Combinam dias precisos do mês (que cumprem religiosamente), manifestam-se da única forma que sabem. Surgem de todos os lados, de todas as esquinas, de todos os becos e dirigem-se para mais uma manifestação. Um dia é nos correios, outro dia é no banco, outro na farmácia, outro nos jardins, outro no centro de saúde, ninguém sabe os dias que escolhem, só eles sabem, eu descobri que esses dias têm algo em comum – faz sempre bom tempo. Sentam-se por lá, nos locais combinados, olham em volta (talvez a contarem-se), no desenho das suas bocas há um risco em ponte, como que desaprovando o facto de tu também estares ali. Fazem filas intermináveis e tiram todas as senhas da máquina das senhas. Não gritam, nem se colocam todos direitos e virados para o mesmo estrado onde o líder está aos berros – não têm líder, já estão velhos demais para aceitarem líder. Ficam por lá, sempre no meio do teu caminho quando estás com pressa porque estás atrasado. Eles tentam passar a mensagem silenciosa que estar atrasado e ter pressa não leva a lado nenhum (só eles sabem disso). Desculpam-se perguntando coisas infinitas sobre o funcionamento básico dos objectos diários: Ó senhor, faxabor, podia dizer-me como se faz para tirar o bilhete do Metro? O senhor descurpe, podia dizer-me como se faz para colocar a caderneta na máquina? Ó menino podia dizer-me como se faz para tirar o papelinho desta máquina? O senhor desculpe, mas podia dizer-me qual é o autocarro que vai…?
É claro que eles sabem, é básico, foi tudo feito para eles, a pensar neles, e o objectivo cumpre-se, tu chegas atrasado ao teu emprego, aos teus afazeres, porque eles estão sempre a perguntar.