"As ondas" (continuação, pág. 55)
“O Sol já nasceu. Barras de amarelo e verde incidem na praia, dourando as traves do barco carcomido e fazendo com que as algas emitam reflexos azul-metalizado. A luz quase que atravessa as finas ondas que se estendem pela praia. A rapariga que abanou a cabeça, fazendo dançar todas as jóias, os topázios, as águas-marinhas, as contas cor de água com lampejos de fogo, desnudou agora a testa e, de olhos bem abertos, traça um caminho em linha recta por sobre as ondas. Os seus brilhos tremeluzentes escurecem; os seus abismos verdes, aprofundam-se e escurecem, podendo ser atravessados por cardumes errantes de peixes. À medida que se quebram e recolhem, deixam atrás de si, na praia, uma orla composta por raminhos e cascas de árvores, palhas e pedaços de madeira, tal como uma chalupa se tivesse quebrado contra as rochas, os marinheiros tivessem nadado para terra, e , do alto do penhasco, vissem a frágil embarcação em que seguiam ser arrastada para a praia.
No jardim, as aves que até agora haviam cantado de forma esporádica, anunciando a alvorada, ora nesta árvore ora naquele arbusto, cantavam agora em coro, alto e bom som; ora juntas (como se estivessem conscientes da companhia) ora a sós (como se para homenagear o pálido céu azul). Como se tivessem combinado, levantavam voo em conjunto quando viam um gato preto avançar por entre os arbustos; quando viam a cozinheira atirar mais uma pá de cinza para o monte já grande do dia anterior. O seu canto revelava medo, dor e apreensão, e também a alegria de terem escapado no instante preciso. Para mais, cantavam também de felicidade no ar fresco da manhã, voando alto por cima do ulmeiro, cantado em conjunto ao se perseguirem mutuamente, escapando-se, tentando agarrar-se enquanto voltejavam nos ares. E então, cansadas de voar e da perseguição, desceram devagar, com suavidade, acabando por poisar e se sentar em silêncio na árvore, no muro, com os olhos brilhantes sempre alerta, e as cabeças ora viradas nesta e naquela direcção; vivos, despertos; profundamente conscientes de uma casa, de um determinado objecto.
Sem parar de olhar de um lado para o outro, começaram a examinar mais em profundidade, virando as cabeças para o nível inferior ao das flores, para as avenidas escuras que compõem o mundo obscuro onde as folhas apodrecem e as flores acabam por cair. Então, um dos pássaros, fazendo um voo rasante, ataca o corpo mole e indefeso de um verme monstruoso, bicando-o repetidas vezes até acabar por decidir deixa-lo apodrecer. Lá em baixo, entre as raízes, onde as flores apodreciam, e elevava-se nos ares toda a espécie de cheiros indicadores da morte; formavam-se gotas nos flancos inchados e entumecidos das coisas. A pele da fruta podre rebentava, e a matéria tornava-se demasiado espessa para correr. As lesmas deixavam atrás de si uma série de excreções amarelas, e, de vez em quando, um corpo amorfo com uma cabeça em ambas as extremidades abanava-se devagar de um lado para o outro. As aves de olhos dourados, poisadas entre as folhas, observavam de forma zombeteira toda aquela purulência, aquela viscosidade. De vez em quando, espetavam as pontas dos bicos na mistura pegajosa.
Também agora o Sol atingiu a janela, tocando a cortina orlada a vermelho, começando a criar círculos e linhas. Agora, à luz da claridade que não parava de aumentar, a sua brancura poisava na bandeja; a lâmina condensava o seu brilho. As cadeiras e os armários apareciam de forma indistinta mais atrás, o que fazia com que, muito embora fossem objectos diferentes, parecessem ser incapazes de se separar. O espelho cobria a parede de branco. A flor que repousava noparpeito da janela tinha por companhia uma flor fantasma. Todavia, aquela espécie de espectro fazia parte da flor, pois que quando se soltava um botão, um outro abria na forma mais pálida, reflectida no espelho.
O vento começou a soprar. As ondas batiam com força na praia, como se fossem guerreiros de turbante, como se fossem homens de turbante com azagaias envenenadas que, erguendo os braços, avançassem contra rebanhos compostos por ovelhas brancas.”
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